“Terça-feira dia 26 de Janeiro. Dia de Orçamento. O Primeiro-ministro José Sócrates, o Ministro de Estado Pedro Silva Pereira, o Ministro de Assuntos Parlamentares, Jorge Lacão e um executivo de televisão encontraram-se à hora do almoço no restaurante de um hotel em Lisboa. Fui o epicentro da parte mais colérica de uma conversa claramente ouvida nas mesas em redor. Sem fazerem recato, fui publicamente referenciado como sendo mentalmente débil (“um louco”) a necessitar de (“ir para o manicómio”). Fui descrito como “um profissional impreparado”. Que injustiça. Eu, que dei aulas na Independente. A defunta alma mater de tanto saber em Portugal. Definiram-me como “um problema” que teria que ter “solução”. Houve, no restaurante, quem ficasse incomodado com a conversa e me tivesse feito chegar um registo. É fidedigno. Confirmei-o. Uma das minhas fontes para o aval da legitimidade do episódio comentou (por escrito): “(…) o PM tem qualidades e defeitos, entre os quais se inclui uma certa dificuldade para conviver com o jornalismo livre (…)”. É banal um jornalista cair no desagrado do poder. Há um grau de adversariedade que é essencial para fazer funcionar o sistema de colheita, retrato e análise da informação que circula num Estado. Sem essa dialéctica só há monólogos. Sem esse confronto só há Yes-Men cabeceando em redor de líderes do momento dizendo yes-coisas, seja qual for o absurdo que sejam chamados a validar. Sem contraditório os líderes ficam sem saber quem são, no meio das realidades construídas pelos bajuladores pagos. Isto é mau para qualquer sociedade. Em sociedades saudáveis os contraditórios são tidos em conta. Executivos saudáveis procuram-nos e distanciam-se dos executores acríticos venerandos e obrigados. Nas comunidades insalubres e nas lideranças decadentes os contraditórios são considerados ofensas, ultrajes e produtos de demência. Os críticos passam a ser “um problema” que exige “solução”. Portugal, com José Sócrates, Pedro Silva Pereira, Jorge Lacão e com o executivo de TV que os ouviu sem contraditar, tornou-se numa sociedade insalubre. Em 2010 o Primeiro-ministro já não tem tantos “problemas” nos media como tinha em 2009. O “problema” Manuela Moura Guedes desapareceu. O problema José Eduardo Moniz foi “solucionado”. O Jornal de Sexta da TVI passou a ser um jornal à sexta-feira e deixou de ser “um problema”. Foi-se o “problema” que era o Director do Público. Agora, que o “problema” Marcelo Rebelo de Sousa começou a ser resolvido na RTP, o Primeiro Ministro de Portugal, o Ministro de Estado e o Ministro dos Assuntos Parlamentares que tem a tutela da comunicação social abordam com um experiente executivo de TV, em dia de Orçamento, mais “um problema que tem que ser solucionado”. Eu. Que pervertido sentido de Estado. Que perigosa palhaçada.”

Suposto artigo de opinião que o JN recusou publicar na  habitual crónica de Mário Crespo.

Comentário:

– Nesta história, olhando para o passado recente,  não existem santos. A ser verdade é uma situação gravíssima

– Custa-me a crer que um jornalista faça denúncias deste calibre baseadas em meros “diz que disse”.

– Não conheço a palavra adversariedade

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“Portugal tem tido muita gente esquisita a governá-lo mas, com Cavaco Silva e José Sócrates, atingimos um elevado grau de desconforto. O semipresidencialismo destes dois homens produziu um regime híbrido que não executa nem deixa executar. Semi-governante e semi-presidente ao fim de quatro anos de semi-vida institucional aparecem embrulhados numa luta por afirmação confusa e desagradável de seguir. O embaraço público que foram os cumprimentos de Natal adensou a sensação de incómodo. O regime poderia funcionar se os actores se quisessem complementar. Mas estes actores, por formação e deformação, não têm valências associáveis. O voluntarismo de que os dois vão dando testemunho não chega para disfarçar as suas limitações. Com eles a circular a alta velocidade nos topos de gama à prova de bala e nos jactos executivos do Estado, o futuro de Portugal fica hipotecado ao patético despique da escolha de impropérios numa inconsequente zaragata de raquíticos. Até que alguém de fora venha pôr ordem na casa. A menos que venha alguém de dentro. Semi-governante e semi-presidente tornaram-se descartáveis e, dada a urgência, é preciso começar pelo Partido Socialista. A crise no PS com a ausência de resultados desta direcção é muito mais séria para Portugal do que o tumulto no PSD. Porque o PS governa e o PSD não. O PSD morreu. Ressuscitará ao terceiro dia para um mundo diferente. Um mundo em que homens casam com homens e mulheres com mulheres e onde se morre, ou se mata, por uma questão de vontade, requerimento ou decreto. Um mundo cheio de coisas difíceis de descrever. Coisas que precisam de muitas palavras para serem narradas e, mesmo assim, não fazem sentido. Como por exemplo a “activista-transexual-espanhola” que é alguém que frequenta o Parlamento de Portugal pela mão deste PS segundo José Sócrates. Um PSD ressuscitado vai ter que incorporar estas invenções na matriz de costumes de Sá Carneiro, inovadora à época, monástica hoje, ainda que, provavelmente, adequada para o futuro. Até lá é aos Socialistas a quem compete definir alguém para governar. Alguém que quando falar de educação não nos faça recordar a Independente. Alguém que quando discutir grandes investimentos não nos faça associar tudo ao Freeport. Alguém que definitivamente não seja relacionável com nada que tenha faces ocultas e que quando se falar de Parlamento não tenha nada a ver com as misteriosas ambiguidades de Carla Antonelli “a activista transexual espanhola” que, com Sócrates, agora deambula pelos Passos Perdidos em busca do seu “direito à felicidade”. O governo não pode estar entregue a um PS imprevisível e imprevidente, menor em qualidades executivas e em ética, capturado nos seus aparelhos por operadores desalmados e oportunistas. Recuperar a majestade das construções ideológicas e políticas de Salgado Zenha, Sottomayor Cardia e Mário Soares é fundamental nesta fase da vida, ou da morte, do país. No Partido Socialista há gente seguramente preparada governar e começar a recuperar o clima de confiança e respeito pelos executivos nacionais que Sócrates e Cavaco arruinaram. Substituir Sócrates é já um dever. Na hierarquia de urgências o problema Cavaco Silva vem depois mas, também aqui, Portugal tem que ter na Presidência alguém que não possa ser nem vagamente relacionável com nada onde subsistam incógnitas. E há muitas incógnitas no BPN. Mas cada coisa a seu tempo. Primeiro o PS, depois o PR.”

Mário Crespo in JN


“Uma coligação acomodada em Estrasburgo incomodou-se com a actividade parlamentar do CDS-PP.

A esquerda portuguesa no Parlamento Europeu uniu-se contra Nuno Melo por uma questão de etiqueta. PS, PCP e BE acham não foi de bom-tom interpelar o Procurador Lopes de Mota no plenário em Estrasburgo sobre a sua tentativa de manipulação da justiça. De lado ficaram as históricas diferenças das Internacionais catalogadas por números. Acabaram-se as subtis variantes do que deve ser um matrimónio entre dois homens ou duas mulheres. Foram-se as vibrantes divergências programáticas dos enunciados de Engels, Bakunin e Trotsky. Tudo porque estão envergonhadíssimos com o ultraje às boas maneiras que foi o questionamento do CDS-PP ao Presidente do Eurojust. Estranha a coligação, perigosa a deriva para o comodismo das conveniências que, simultaneamente, Ilda Figueiredo (PCP), Correia de Campos e Edite Estrela (PS) e Miguel Portas (BE) denotaram ter. Todos puxaram pelos galões de apparatchiks instalados para, com o olho crítico de conhecedores da inacção prolongada, lançar uma excomunhão conjunta sobre Nuno Melo por ter levantado o tema. Traduzida por miúdos a reacção do grupo expedicionário da Esquerda Portuguesa foi: aqui não se fazem ondas. Come-se e cala-se. Correia de Campos achou a interpelação a Lopes da Mota “parola e reveladora de atraso cultural”. O antigo Ministro de Sócrates sentia-se confortável com um alto magistrado de Portugal com poderes condicionados pelo seu comportamento no Freeport à frente do Eurojust. Mas acha mal que o assunto, já do conhecimento de toda a Europa, seja abordado no Parlamento Europeu. Isso, para Correia de Campos, é atitude que “prejudica a posição e o prestígio do País”, rematando com um notável “no estrangeiro somos todos descendentes de Vasco da Gama”. Certo. Seremos isso. Mas essa estirpe ilustre não nos obriga a ser cúmplices de Lopes da Mota nas irregularidades que o Conselho Superior do Ministério Público detectou. Pelo contrário. A distinção dessa linhagem manda que se usem todos os meios para não deixar que o nome de Portugal e a dignidade das suas instituições sejam melindrados às mãos de terceiros. Compete a portugueses interpelar, julgar e condenar Lopes das Mota. Ilda Figueiredo e Miguel Portas alinharam com paixão no Auto de Fé dos zelotes deste PS de boas maneiras. Para Portas, o Deputado do CDS-PP fez tudo para ter direito a “10 segundos de glória nos Telejornais” (teve muito mais. Só eu dei-lhe 2′ e 11″). Para o Partido Comunista Português as denúncias de Nuno Melo seriam “fenómeno passageiro” de politico habituado a São Bento mas desconhecedor das diferenças com Estrasburgo, disse a repetente comunista em Bruxelas. Para usar a terminologia de Correia de Campos: que “entendimento parolo” das suas funções e dos seus deveres na Europa terão adquirido estes veteranos da acomodação política? Será que a vegetativa existência de que desfrutam há tantos anos lhes destruiu o bom senso? Será que não vêm que ter um jurista suspeito (e agora culpado) de pressões ilegais à frente de um órgão judiciário internacional exige interpelações parlamentares sempre que possível? Será que não vêm que foi melhor e mais digno serem portugueses a fazê-las do que outros que as fariam de certeza, mais cedo ou mais tarde?”

Mário Crespo in JN


“A escolha

é simples. Ou se torna

O palhaço compra empresas de alta tecnologia em Puerto Rico por milhões, vende-as em Marrocos por uma caixa de robalos e fica com o troco. E diz que não fez nada. O palhaço compra acções não cotadas e num ano consegue que rendam 147,5 por cento. E acha bem. O palhaço escuta as conversas dos outros e diz que está a ser escutado. O palhaço é um mentiroso. O palhaço quer sempre maiorias. Absolutas. O palhaço é absoluto. O palhaço é quem nos faz abster. Ou votar em branco. Ou escrever no boletim de voto que não gostamos de palhaços. O palhaço coloca notícias nos jornais. O palhaço torna-nos descrentes. Um palhaço é igual a outro palhaço. E a outro. E são iguais entre si. O palhaço mete medo. Porque está em todo o lado. E ataca sempre que pode. E ataca sempre que o mandam. Sempre às escondidas. Seja a dar pontapés nas costas de agricultores de milho transgénico seja a desviar as atenções para os ruídos de fundo. Seja a instaurar processos. Seja a arquivar processos. Porque o palhaço é só ruído de fundo. Pagam-lhe para ser isso com fundos públicos. E ele vende-se por isso. Por qualquer preço. O palhaço é cobarde. É um cobarde impiedoso. É sempre desalmado quando espuma ofensas ou quando tapa a cara e ataca agricultores. Depois diz que não fez nada. Ou pede desculpa. O palhaço não tem vergonha. O palhaço está em comissões que tiram conclusões. Depois diz que não concluiu. E esconde-se atrás dos outros vociferando insultos. O palhaço porta-se como um labrego no Parlamento, como um boçal nos conselhos de administração e é grosseiro nas entrevistas. O palhaço está nas escolas a ensinar palhaçadas. E nos tribunais. Também. O palhaço não tem género. Por isso, para ele, o género não conta. Tem o género que o mandam ter. Ou que lhe convém. Por isso pode casar com qualquer género. E fingir que tem género. Ou que não o tem. O palhaço faz mal orçamentos. E depois rectifica-os. E diz que não dá dinheiro para desvarios. E depois dá. Porque o mandaram dar. E o palhaço cumpre. E o palhaço nacionaliza bancos e fica com o dinheiro dos depositantes. Mas deixa depositantes na rua. Sem dinheiro. A fazerem figura de palhaços pobres. O palhaço rouba. Dinheiro público. E quando se vê que roubou, quer que se diga que não roubou. Quer que se finja que não se viu nada.

Depois diz que quem viu o insulta. Porque viu o que não devia ver.

O palhaço é ruído de fundo que há-de acabar como todo o mal. Mas antes ainda vai viabilizar orçamentos e centros comerciais em cima de reservas da natureza, ocupar bancos e construir comboios que ninguém quer. Vai destruir estádios que construiu e que afinal ninguém queria. E vai fazer muito barulho com as suas pandeiretas digitais saracoteando-se em palhaçadas por comissões parlamentares, comarcas, ordens, jornais, gabinetes e presidências, conselhos e igrejas, escolas e asilos, roubando e violando porque acha que o pode fazer. Porque acha que é regimental e normal agredir violar e roubar.

E com isto o palhaço tem vindo a crescer e a ocupar espaço e a perder cada vez mais vergonha. O palhaço é inimputável. Porque não lhe tem acontecido nada desde que conseguiu uma passagem administrativa ou aprendeu o inglês dos técnicos e se tornou político. Este é o país do palhaço. Nós é que estamos a mais. E continuaremos a mais enquanto o deixarmos cá estar. A escolha é simples.

Ou nós, ou o palhaço.”

Mário Crespo in JN


“Eu sei que é importante. Ou melhor. Uma parte de mim acha que é importante. Melhor ainda. Parte de mim acha que deve ser importante embora, muito de mim, ache que não é. Este tratado de Lisboa não pode ter importância nenhuma para as centenas de pessoas da Quimonda que já não havia há anos mas que ninguém queria ver que já lá não estava. O que quer que tenha sido rubricado em Lisboa nada significa para as centenas da Lear que vão juntar-se às centenas da Quimonda e da Delphi e da Aerosoles e da Opel e da Leoni e para as centenas de milhar que trabalhavam em coisas que estão desaparecer sem deixar sequer um nome a recordar promessas passadas do ontem que dor deixou e não deixou mais nada. Só que, contrariamente a mim, essas centenas de milhar já não hesitam. Não concedem benefícios de dúvida. Têm a certeza que o que foi assinado em Lisboa nada tem a ver com esta Segunda-feira com as crianças a ir para a escola: “Bebe o leite a meio da manhã filha.”. “Bebe o leite a meio da manhã filho.”. “Come tudo ao lanche porque senão ficas com fome durante o resto do dia.”. E o resto da noite. “Come tudo, filho”, que a mãe hoje vai ao Banco Alimentar. E amanhã é já outro dia. “Tenho aqui um curso de jardineiro. Para estofadores não há nada. Nem para torneiros. Nem para escriturários. Assine aqui por favor.” Não. De facto a assinatura de Lisboa não lhes pode dizer nada. E só com muito esforço é que vale alguma coisa para mim. Um esforço feito de infinitas cumplicidades em que eu (já só pode ser por desleixo) finjo acreditar que é justo gastar um milhão de Euros numa tenda de plástico e em luzes e em fogo de artifício para secar a chuva da noite de um Domingo de plástico para me convencerem de que a Europa vai bem e fazer-me esquecer que nas Segundas-feiras a seguir há centros de saúde com gente cheia de dores de dentes, mesmo sabendo que lá não se trata dos dentes, mesmo sabendo que se tem setenta pessoas à frente e se vai ficar no corredor de pé à espera, com frio e com calor, e com dores de dentes. E que agora se vai nascer a Espanha porque é melhor. É um esforço de desmazelo espiritual, acreditar que na tenda electrónica de Domingo, depois de um qualquer pacto monstruoso, o projecto Europeu está vibrante e pujante e importante quando a chuva que anuncia todos os invernos que aí vêm continua cair e só não encharca as comitivas que vêm a Lisboa de jacto executivo porque o plástico da barraca nacional cobre tudo até à passadeira vermelha feita na China onde param as altas cilindradas alemãs feitas no Leste por gentes sem serviço nacional de saúde. E há cada vez mais polícia cá fora. Depois fica relva pisada e lama no chão. É o que sobra levantada a tenda e o circo. E sem bom senso e pudor, não sobra nada a não ser um décimo de Portugal que vai na Segunda-feira aos centros de desemprego, ao leite gratuito da escola, ao Banco Alimentar e aos outros sítios onde é difícil acreditar no que quer que seja. Porque não faz sentido acreditar. Não é real. Não há realidade na Presidência transferida para um hotel de luxo no Estoril para fingir, não se sabe bem o quê, durante três dias de imitação de preocupações democráticas globais num vamos-brincar-às-super-potências. Nem há realidade na barraca do tratado das ilusões plásticas e ópticas e electrónicas onde se finge que se governa, que se preside, que se é relevante. Quando não se é. A realidade está na fila do desemprego. O Fundo Monetário Internacional sabe disso.”

Mário Crespo in JN


libação progressiva” devia ser um termo da ciência jurídica em Portugal. Descreve uma tradição das procuradorias-gerais da República. Verifica-se quando o poder cai sob a suspeita pública. Pode definir-se como a reabilitação gradual das reputações escaldadas por fogos que ardem sem se ver porque a justiça é cega. Surge, sempre, a meio de processos, lançando uma atmosfera de dúvida sobre tudo. As “Ilibações” mais famosas são as declarações de Souto Moura sobre alegadas inocências de alegados arguidos em casos de alegada pedofilia. As mais infames, por serem de uma insuportável monotonia, são os avales de bom comportamento cívico do primeiro-ministro que a Procuradoria-Geral da República faz regularmente. Dos protestos verbais de inocência dos arguidos que Souto Moura deu à nossa memória colectiva, Pinto Monteiro evoluiu para certidões lavradas em papel timbrado com selo da República onde exalta a extraordinária circunstância de não haver “elementos probatórios que justifiquem a instauração de procedimento criminal contra o senhor primeiro-ministro”. Portanto, pode parecer que sim. Só que não se prova. Ou não se pode provar. Embora possa, de facto e de direito, parecer que sim. Este género de aval oficial de “parem-lá-com-isso-porque-não-conseguimos-provar” já tinha sido feito no “Freeport”. Surge agora no princípio do “Face Oculta” com uma variante assinalável. A “Ilibação progressiva” deixou de ser ad hominem para ser abrangente. Desta vez, o procurador-geral da República não só dá a sua caução de abono ao chefe do Governo como a estende a “qualquer outro dos indivíduos mencionados nas certidões”, que ficam assim abrangidos por estes cartões de livre-trânsito oficiais que lhes vão permitir dar voltas sucessivas ao jogo do Poder sem nunca ir para a prisão. Portanto, acautelem-se os investigadores e instrutores de província porque os “indivíduos mencionados em certidões” já têm a sua inocência certificada na capital e nada pode continuar como dantes.

Desta vez, nem foi preciso vir um procurador do Eurojust esclarecer a magistratura indígena sobre limites e alcances processuais. Bastou a prata da casa para, num comunicado, de uma vez só, ilibar os visados e condicionar a investigação daqui para a frente. Só fica a questão: que Estado é este em que o chefe do Executivo tem de, com soturna regularidade, ir à Procuradoria pedir uma espécie de registo criminal que descrimine vários episódios de crime público e privado e que acaba sempre com um duvidoso equivalente a “nada consta – até aqui”.

Ângelo Correia, nos idos de 80, quando teve a tutela da Administração Interna acabou com a necessidade dos cidadãos terem de apresentar certidões de bom comportamento cívico nos actos públicos. A Procuradoria-Geral da República reabilitou agora estes atestados de boa conduta para certos crimes. São declarações passadas à medida que os crimes vão sendo descobertos, porque é difícil fazer valer um atestado de ilibação progressiva que cubra a “Independente”, o “Freeport” e a “Face Oculta”. Quando se soube do Inglês Técnico não se sabia o que os ingleses tinham pago pelos flamingos de Alcochete e as faces ainda estavam ocultas. Portanto, o atestado de inocência passado pelo detentor da acção penal, para ser abrangente, teria de conter qualquer coisa do género… “fulano não tem nada a ver com a ‘Face Oculta’ nem tem nada a ver com o que eventualmente se vier a provar no futuro que careça de qualquer espécie de máscara”, o que seria absurdo. Por outro lado, a lei das prerrogativas processuais para titulares de órgãos de soberania do pós-“Casa Pia”, devidamente manipulada, tem quase o mesmo efeito silenciador da Justiça.”

Mário Crespo in Jn


“Mark Felt foi um daqueles príncipes que o sólido ensino superior norte-americano produz com saudável regularidade. Tinha uma licenciatura em Direito de Georgetown e chegou a ser uma alta patente da marinha dos Estados Unidos. Com este formidável equipamento académico desempenhou missões complexas no Pentágono e na CIA.

Durante a guerra do Vietname serviu no Conselho Nacional de Segurança de Henry Kissinger. Acabou como Director Adjunto do equivalente americano à nossa Polícia Judiciária. Durante vários anos foi Director Geral interino do FBI. Foi nesse período que Mark Felt se tornou no Garganta Funda. Muito se tem escrito sobre as motivações de um alto funcionário do aparelho judiciário americano na quebra do segredo de justiça no Watergate. Todo o curriculum de Felt impunha-lhe, instintivamente, a orientação clássica de manter reserva total sobre assuntos do Estado. Hoje é consensual que Mark Felt só pode ter denunciado a traição presidencial de Nixon por uma razão. Para ele, militar e jurista, acabar com o saque da democracia americana era uma questão de honra. Pôr fim a uma presidência corrupta e totalitária era um imperativo constitucional. Felt começou a orientar em segredo os repórteres do Washington Post quando constatou que todo o aparelho de estado americano tinha sido capturado na teia tecida pela Casa Branca de Nixon e que, com as provas a serem destruídas, os assaltos ao multipartidarismo ficariam impunes. A única saída era delegar poder na opinião pública para forçar os vários ramos executivos a cumprir as suas obrigações constitucionais.

Estamos a viver em Portugal momentos equiparáveis. Em tudo. Se os mecanismos judiciais ficarem entregues a si próprios, entre pulsões absurdamente garantisticas, infinitas possibilidades dilatórias que se acomodam nos seus meandros e as patéticas lutas de galos, os elementos de prova desaparecem ou são esquecidos. Os delitos ficam impunes e uma classe de prevaricadores calculistas perpetua-se no poder. Face a isto, há quem no sistema judicial esteja consciente destas falhas do Estado e, por uma questão de honra e dever, esteja a fazer chegar à opinião pública elementos concretos e sólidos sobre aquilo que, até aqui, só se sussurrava em surdinas cúmplices. E assim sabe-se o que dizem as escutas e o que dizem as gravações feitas com câmaras ocultas que registam pedidos de subornos colossais. Ficámos a conhecer as estratégias para amordaçar liberdades de informação com dinheiro do Estado. E sabemos tudo isto porque, felizmente, há gente de honra que o dá a conhecer.

Por isso, eu confio no Procurador que mandou investigar as conversas de Vara com quem quer que fosse. Fê-lo porque achou que nelas haveria matéria de importância nacional. E há. Confio no Juiz que autorizou as escutas quando detectou indícios de que entre os contactos de Vara havia faces até aqui ocultas com comportamentos intoleráveis. E, infelizmente o digo, confio, sobretudo, em quem com toda a dignidade democrática e grande risco pessoal, tem tomado a difícil decisão de trazer ao conhecimento público indícios de infâmias que, de outro modo, ficariam impunes. A luta que empreenderam, pela rectificação de um sistema que a corrupção e o medo incapacitaram, é muito perigosa. Desejo-lhes boa sorte. Nesta fase, travam a batalha fundamental para a sobrevivência da democracia em Portugal. Têm que continuar a lutar. Até que a oposição cumpra o seu dever e faça cair este governo.”

Mário Crespo in JN


“O sistema judicial português enfrenta o imenso desafio de não deixar que o Face Oculta se torne numa segunda Casa Pia. Até aqui o processo tem tido um avanço modelar. Não houve interferências políticas. Lopes da Mota não veio de Bruxelas discutir com os seus pares metodologias de arquivamento e, no que foi uma excelente janela de oportunidade de afirmação de independência, não havia sequer Ministro da Justiça na altura em que o País soube da enormidade do que se estava a passar no mundo da sucata. Mas, há ainda um perturbante sinal de identidade com a Casa Pia. É que o único detido, até aqui, é o equivalente ao Bibi e Manuel Godinho, o sucateiro, no mundo da alta finança política não pode ser muito mais do que Carlos Silvino foi no mundo da pedofilia. Ambos serviram amos exigentes, impiedosos e conhecedores que tentaram, e tentam, manter a face oculta. É preciso ter em mente que as empresas públicas são organizações complexas. Foram concebidas para ser complicadas. Com os tempos foram-se tornando cada vez mais sinuosas. Nas EPs, as tecnoestruturas, que Kenneth Galbraith identificou e descreveu como o cancro das grandes organizações, ocupam tudo e têm-se multiplicado, imunes a qualquer conceito de racionalidade democrática, num universo onde não conta o bom senso ou a lógica de produtividade. Parecem ter um único fim: servirem-se a si próprias. Realmente já não são fiscalizáveis. Nas zonas onde era possível algum controlo foram-se inventando compartimentos labirínticos para o neutralizar, com centros de custos onde se lançam verbas no pretexto teórico de elaborar contabilidades analíticas, mas cujo efeito prático é tornar impenetráveis os circuitos por onde se esvai o dinheiro público. Há sempre mais um campo a preencher em formulários reinventados constantemente onde as rubricas de gente que de facto é inimputável são necessárias para manter os monstros a funcionar. Sem controlo eficaz, nas empresas públicas é possível roubar tudo. Uma resma de papel A4, uma caneta BIC, um milhão de Euros, uma auto-estrada ou uma ponte. Tudo isto já foi feito. Por isso mais de metade do produto do trabalho dos portugueses está a fugir por esse mundo soturno que muito poucos dominam. Por causa disso, grande parte do património nacional é já propriedade dos conglomerados político-financeiros que hoje controlam o País. Por tudo isto é inconcebível que Manuel Godinho tenha sido o cérebro do polvo que durante anos esteve infiltrado nas maiores empresas do Estado. Ele nunca teria conhecimentos técnicos para o conseguir ser. Houve quem o mandasse fazer o que fez. Godinho saberá subornar com de sacos de cimento um Guarda-republicano corrupto ou disfarçar com lixo fedorento resíduos ferrosos roubados (pags 8241 e 8244 do despacho judicial). Saberá roubar fio de cobre e carris de caminho de ferro. Mas Godinho não é mais do que um executor empenhado e bem pago de uma quadrilha de altos executivos, conhecedores do sistema e das suas vulnerabilidades, que mandou nele. É preciso ir aos responsáveis pelas empresas públicas e aos ministérios que as tutelam. Nas finanças públicas, Manuel Godinho não é mais do que um Carlos Silvino da sucata. Se se deixar instalar a ideia de que ele é o centro de toda a culpa e que morto este bicho está morta esta peçonha, as faces continuarão ocultas. E a verdade também.”

Mário Crespo in JN


“Façamos de conta que e o que passou no BPN e na SLN não é mesmo uma enorme “roubalheira”. Façamos de conta que há outro termo para descrever correctamente o saque de dois mil milhões de dinheiro dos portugueses.

Façamos de conta que a mais-valia de 147 por cento do investimento de Aníbal Cavaco Silva e família não aparece nos dois mil milhões de prejuízos do BPN nacionalizado. Façamos de conta que não é o contribuinte português quem está a pagar esses dois mil milhões. Façamos de conta que é normal conseguir valorizar um investimento 147,5 por cento em menos de dois anos. Tudo isto fora do controlo das entidades fiscalizadoras e reguladoras do mercado de capitais. Façamos de conta que um conglomerado de bancos e offshores que compra coisas por dezenas de milhão, que vende depois por um dólar, e que rende mais do que a Dona Branca, é normal. Façamos de conta que um negócio gerido assim faz algum sentido no mercado. Façamos de conta que é acessível ao cidadão comum um negócio destes. Façamos de conta que sabemos todas as circunstâncias da compra e da recompra das acções de tão prodigiosa mais valia, que a família Silva detinha no projecto de Dias Loureiro e Oliveira e Costa. Façamos de conta que a SLN não tem nada a ver com o BPN. Façamos de conta que o BPN e a SLN não têm um número invulgar de gente do PSD envolvido nas suas actividades. Façamos de conta que Aníbal Cavaco Silva não é a personalidade de mais influência no PSD. Façamos de conta que os termos SLN, Sociedade Lusa de Negócios ou SLN Valor aparecem no comunicado da Presidência da República de 23 de Novembro de 2008. Façamos de conta que, nesta fase de dúvidas, é aceitável uma declaração como a emitida pelo Palácio de Belém sem referências ao valioso investimento familiar no mais controverso dos projectos financeiros da história de Portugal. Quando é só esse investimento que está causa. Por ser uma aplicação num projecto de licitude duvidosa. Façamos de conta que o Chefe Executivo desse projecto não tinha sido um íntimo colaborador de Aníbal Cavaco Silva responsável por finanças públicas. Façamos de conta que entre 2001 e 2003 os negócios do BPN e da SLN decorriam de forma irrepreensível e no cumprimento integral da lei da República. Façamos de conta que não foi por escolha pessoal do Presidente da República que Dias Loureiro foi nomeado Conselheiro de Estado. Façamos de conta que, como o Presidente disse, estar Dias Loureiro no Conselho de Estado era a mesma coisa que estar António Ramalho Eanes ou Mário Soares ou Jorge Sampaio. Façamos de conta que o Presidente relatou tudo o que devia ter relatado ao País sobre os seus activos passados nos projectos de Oliveira e Costa e Dias Loureiro. Façamos de conta que não há gente presa por causa do BPN. Façamos de conta que não vai haver mais gente presa. Façamos de conta que o que se passou no BPN e na SLN não é mesmo uma enorme “roubalheira”. Façamos de conta que há outro termo para descrever correctamente um saque de dois mil milhões de dinheiro dos portugueses. Façamos de conta que não conseguimos imaginar quantas escolas, quantos hospitais, quantas contas de farmácia, quantas pensões mínimas, quantas refeições decentes se podem comprar com esse dinheiro. Façamos de conta que basta, apenas, cumprir rigorosamente a Lei e ignorar o que a Lei não diz, para se ser inquestionavelmente impoluto. Façamos de conta que não sabemos o que se está a passar à nossa volta. Até onde aguenta o País continuarmos a fazer de conta que não vemos? ”

Mário Crespo in JN


“Em Portugal, para os que gostam de grandes superfícies, nos próximos processos eleitorais só há duas opções. Ou votam Freeport ou votam BPN. Qualquer das escolhas é arriscada. A mais incerta, nesta altura, ainda é o BPN. Sabe-se que começa algures entre perdões fiscais num governo de Cavaco Silva, mas depois o rasto vai-se perdendo entre offshores e quadros de Miró, numa teia de descrições absurdas.

Mas na investigação parlamentar do BPN há um elemento comum que tem transitado de sessão para sessão: o quase mutismo dos partidos do bloco central de interesses. Os registos da comissão mostram que apesar das monstruosidades já apuradas os dois grandes partidos da democracia portuguesa anulam-se em silêncios comprometidos e questões irrelevantes, enquanto CDS, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português mantêm a pressão que tem empurrado os declarantes para a velha táctica de defesa ensinada por Richard Nixon aos seus cúmplices no Watergate. “Respondam sempre que não se lembram dos pormenores. Nunca se auto-incriminem. Nunca prestem informação voluntariamente”. E é isso que tem acontecido. No BPN, os administradores executivos dizem que não se lembram sequer uns dos outros, quanto mais do que quer que tenham feito em duas décadas de roda livre de governos PSD e PS, em que os dinheiros do BPN andaram por contas de partidos e por praças com tradições de grande ética financeira como Marrocos, Líbano e as Ilhas Cayman.

As transcrições das audições em Comissão Parlamentar do caso BPN parecem decalques das actas do Congresso Americano nos inquéritos de Watergate, tal é a profusão dos “não-me-recordo” e “não-o-conheço”. Portanto, em qualquer das três eleições, um voto no BPN pode equivaler a apoiar algo que ainda está de facto por explodir, mas que explodirá quando Nuno Melo, João Semedo ou Honório Novo chegarem à fase de indagar sobre a participação dos serviços do BPN em processos eleitorais do passado-presente. Com o BPN em fase pré-explosiva, o Freeport entrou na etapa pré-implosiva. Entre segredos de justiça e avales oficiais de inocência (surpreendentes para processos em segredo), a respeitabilidade do edifício judicial de investigação cai sobre si própria atingindo o absurdo das concomitantes “investigações sobre a investigação”.

Daqui a questão: vota-se Freeport ou BPN? O voto no BPN já se sabe quanto nos custou. Entre as clemências tributárias no governo de Cavaco Silva e as compras de empresas tecnológicas nesse conhecido centro de ciência avançada que é Puerto Rico, os portugueses já desembolsaram 1,8 mil milhões de euros para pagar as megalomanias de dois membros do núcleo duro político do actual presidente da República. O voto no Freeport ainda não se sabe quanto vai custar. De facto, até há o aspecto estranhíssimo do Freeport ser um completo e assumido desastre comercial. Para quê, então, gastar tanto milhão a alterar uma reserva da natureza que era, por ordenamento, inalterável? Era bom fazer esta pergunta antes do Freeport implodir para tentar compreender o que é que virá depois da implosão. Pelo sim pelo não, enquanto não houver respostas, acho que é altura de fugir destas grandes superfícies, senão acabamos esmagados por elas. ”

Mário Crespo in JN